O Centro Cultural da Caloura acolhe a exposição “Nas Manchas da Luz, no Caos das Linhas”, do artista portuense Rui Aguiar, que construiu um percurso artístico profundamente ligado ao contexto cultural açoriano.
Em
entrevista ao Açoriano Oriental, Rui Aguiar recordou que a sua relação
com os Açores remonta aos anos 70, quando prestou serviço militar na
Marinha, na ilha de São Miguel.
“Eu estava engajado na luta contra a Guerra Colonial e tinha ligações com algumas pessoas de esquerda, que me deram algumas referências, como a Cooperativa Sextante, à qual pertenciam Eduardo Pontes, Borges Coutinho (Marquês da Praia) e Melo Antunes. E foi aí que conheci algumas pessoas”, recorda.
Durante essa estada em São Miguel, Rui Aguiar acabou por relacionar-se com o pintor Tomaz Borba Vieira que, ao ver os seus trabalhos, o desafiou a apresentá-los em exposição.
“O Tomaz convenceu-me a organizar, com a Sextante, a minha primeira exposição, mas a PIDE proibiu-a e convocou-me para ir à sede”, conta, recordando que o comandante naval não lhe permitiu prestar declarações à PIDE.
Mesmo assim, a exposição acabou por se realizar no dia 1 de maio de 1972, no Externato do Infante, já no âmbito da Galeria Teia.
“Essa foi a primeira vez que me assumi em público como o pintor Rui Aguiar”, destaca, lembrando que o cancelamento da exposição na Sextante o levou a publicar um anúncio no jornal Açoriano Oriental a pedir desculpa pelo cancelamento da mostra.
Durante esse período, Rui Aguiar foi um dos fundadores da galeria “A Teia”, um espaço cultural pioneiro em Ponta Delgada.
A galeria, idealizada por Tomaz Borba Vieira e impulsionada por Rui Aguiar, Luís França e Eduardo Pontes, surgiu num contexto social de forte conservadorismo político, propondo-se a democratizar a cultura e a promover a arte contemporânea na região.
Como recorda o artista, “A Teia” destacou-se como um núcleo experimental e progressista, sendo a primeira galeria nos Açores a expor obras de artistas modernistas e contemporâneos, incluindo o escultor Canto da Maya, cujos trabalhos já tinham alcançado reconhecimento internacional. Esta iniciativa revelou-se um marco na introdução da arte contemporânea na região, atraindo mais de mil visitantes no primeiro dia da exposição inaugural — um gesto de resistência cultural e de afirmação da importância da arte enquanto espaço de questionamento e liberdade.
Rui Aguiar foi, além de artista expositor, um dos principais mentores do projeto, desempenhando um papel ativo na dinamização da galeria e do ateliê experimental anexo. Para além de “A Teia”, esteve também envolvido na criação e consolidação de outros espaços culturais, como as galerias Degrau, na ilha Terceira, e Francisco Lacerda, em São Jorge, contribuindo de forma decisiva para a construção de uma identidade cultural açoriana contemporânea.
Ao longo da sua vida, Rui Aguiar
nunca perdeu a sua ligação a São Miguel, para onde regressou com os seus
trabalhos e onde conta que ainda hoje tem grandes amigos.
“Eu continuei a ir aos Açores porque me tornei muito amigo do Tomaz Borba Vieira, mas também do Albano Furtado, que é da Ribeira Grande”, refere, lembrando a exposição “Rui Aguiar”, que realizou em 1991, na Pontilha – Associação Cultural da Ribeira Grande.
“Esta exposição, que foi feita numa casa que estava abandonada, prestava uma homenagem aos moleiros da Ribeira Grande, com uma referência à ribeira”, descreve, referindo que está documentada num catálogo que publicou posteriormente, intitulado A Ilha e a Luz.
A exposição “Nas Manchas da Luz, no Caos das Linhas”, que integra as celebrações dos 20 anos do Centro Cultural da Caloura, representa assim um reencontro simbólico entre artistas e intelectuais que, em tempos desafiadores, lutaram pela liberdade de expressão artística nos Açores.
Inspirada pelo legado de iniciativas como a galeria “A Teia”, esta exposição celebra igualmente a resistência cultural e a democratização da arte na região.
Neste contexto, com direção artística de Bárbara Jasmins, a exposição propõe uma reflexão crítica sobre a persistência da memória visual e a sua inscrição nos processos da criação artística contemporânea.
“Através de uma abordagem que privilegia a materialidade e a experimentação como dispositivos de pensamento, a obra de Aguiar convida o público a caminhar em zonas de fricção, explorando as formas como o passado se infiltra na superfície sensível do discurso pictórico”, é revelado, sendo realçado que “a prática artística deste autor caracteriza-se pela exploração de materiais presentes no quotidiano, incorporando-os em obras que variam entre pintura, instalação, colagens e imagens digitais”.
“O artista opera um processo de fragmentação e reconfiguração da imagem, alinhado com a apreciação radical de materiais exteriores e até incomuns face ao cânone tradicional das artes — própria da Arte Povera”, acrescenta.
A exposição, patente até 18 de agosto, reúne uma seleção de obras que percorre distintos momentos da sua trajetória artística, evidenciando a persistência dos temas que o mobilizam há décadas, explorados através de múltiplos suportes e linguagens — da imagem em movimento à pintura, passando pela escultura e pela instalação.
Rui Aguiar, que possui um percurso multifacetado
que inclui cenografia, imagens digitais, ilustração, pintura e
instalação, é fundador da COARA – Centro Oficina Artística Rui Aguiar,
uma associação cultural dedicada à preservação, estudo e divulgação da
sua obra. A COARA, sediada no Porto, organiza exposições, visitas
guiadas e sessões de debate, promovendo o legado artístico de Rui Aguiar
e contribuindo para a compreensão do ambiente artístico português das
últimas décadas.