Sidónio Bettencourt: cinco décadas de rádio, memórias e emoções

Sidónio Bettencourt. Nasceu em São Miguel, mas é descendente de uma família de baleeiros das Lajes do Pico. Há quase 50 anos profissional de rádio, assistiu e reportou ao nascimento da autonomia e viu a Região desenvolver-se e acompanhou as suas gentes quer as que ficaram quer as que tiveram de partir à procura de melhor vida




Próximo dos 70 anos - data que assinalará o fim de uma carreira de quase cinco décadas na rádio - Sidónio Bettencourt recorda os momentos marcantes da sua vida pessoal e profissional. Da infância entre São Miguel, Pico e Águeda à paixão pela rádio, da vida profissional às perdas mais profundas, este é o retrato de um comunicador que deu voz às ilhas e se tornou parte da sua história.

O profissional da rádio e televisão recorda a infância marcada pela vida militar do pai, que, após o casamento, trouxe a mãe do Pico para São Miguel, onde Sidónio nasceu e viveu até aos cinco anos.

“Em 1961, quando rebenta a Guerra Colonial, o meu pai vai para África. Lembro-me de, num sábado do Senhor Santo Cristo, ver chegarem as tropas para o levarem para Santana. Ouvia-se os foguetes e as filarmónicas, mas também via a minha mãe desfeita”, conta, explicando que, nessa altura, a mãe decidiu regressar ao Pico, onde viveram durante três anos.

“O Pico marcou-me muito: os baleeiros, o dia de São Vapor… O meu avô ia ao vapor e trabalhava no que hoje se poderia chamar estiva. Eu levava-lhe a comida quando ele vinha da baleia. Mas ele protegia-me sempre. Eu era um menino, fui criado como tal, porque o pai estava na guerra. Não podia dar desgostos a ninguém. E o meu tio, que era o meu professor, também não queria que eu falhasse. Tudo isso deu-me uma formação à força e também o receio de ‘meter água’”, partilha.

Quando sai do Pico, com o fim da primeira comissão do pai em África, regressa a São Miguel por dois anos. Entretanto, a família muda-se para Águeda, no distrito de Aveiro, o que lhe abre um novo mundo de experiências: passa a frequentar a escola em Aveiro, tem pela primeira vez acesso à televisão e nasce a paixão pela rádio.

“Águeda é o centro onde o menino tem televisão e vê o ‘Zip-Zip’, o Raul Solnado, o Carlos Cruz, o Fialho Gouveia... Apanho a ‘Noite de Teatro’, o ‘Festival da Canção’ nos anos de 67, 68 e 69. E o Manuel Alegre, filho de Águeda, na Voz da Argélia”, revela.

É também em Águeda que tem oportunidade de privar com Otelo Saraiva de Carvalho, que deu aulas de tática militar na Escola Militar e conhecia o seu pai da primeira comissão em África.

“O Otelo foi para a vida militar, mas, no fundo, era um homem do teatro. E quem é que ele escolhe para fazer as récitas de Natal para os generais? O Sidónio, que ensaiava sozinho em casa”, recorda, explicando que declamar poemas já era algo que o fascinava.

Regressa a São Miguel no início da década de 70, para estudar no Liceu de Ponta Delgada, numa nova etapa da sua vida.

Aqui faz grandes amigos, mas não abandona o fascínio pela rádio. Ainda no liceu, ganha coragem e bate à porta da Emissora Nacional, propondo a realização de um programa. É recebido por Luís Cabral, a quem chama o seu primeiro “grande mestre”.

“Na minha inocência, bati à porta da Emissora Nacional e fui recebido por Luís Cabral, que me deixou entrar. Acho que gostou de mim”, conta.

Deste ato de coragem nasce a oportunidade de fazer uns testes e gravar um programa para o público. Contudo, o projeto nunca chegou a ser emitido, o que o fez quase desistir.
Com o 25 de Abril e a chegada da Liberdade, a Emissora Nacional contacta-o para retomar o programa.

“Fui lá e disseram-me: ‘Era só para lhe dizer que já pode pôr o programa no ar. Está aqui o guião. Se quiser, pode gravar de novo, mas está bom.’ Quando vi o guião, estava todo riscado. A minha ingenuidade levou-me a pensar que tinha sido por causa da minha vozinha que o programa não fora emitido. A partir daí, nunca mais saí dali”, relata, lembrando que o seu primeiro programa de rádio se chamava “Visão 74”.

Só em 1976 entra para os quadros da Emissora Nacional, onde começou como jornalista. Mais tarde, também integrou a RTP Açores. Apresenta há 22 anos o programa “Interilhas”, na Antena 1, e foi durante 21 anos o rosto de “Atlântida”, emitido na RTP Açores, RTP Madeira e RTP Internacional, sendo frequentemente enviado especial a eventos regionais, nacionais e internacionais.

De toda esta vida na rádio e televisão ficam muitas memórias, uma ligação profunda aos Açores e às suas gentes - tanto as que cá vivem como as que partiram à procura de uma vida melhor.

“Sempre pensei no contributo que poderia dar à terra e às pessoas. Foram muitos anos e muitos momentos entre ilhas e comunidades, e tudo isso ainda é muito difícil de pensar que vai deixar”, lamenta, explicando que se irá aposentar no próximo mês de dezembro, quando fizer 70 anos.

Com uma vida profissional de sucesso, Sidónio Bettencourt fala também da sua esfera mais íntima - da alegria que os seus filhos e neta lhe proporcionam, mas também da dor que sente ao recordar o filho que morreu com apenas dois anos.

“Era fevereiro, tempo de Carnaval. Estava a entrevistar um palhaço do circo no Coliseu Micaelense quando colegas e conhecidos vieram ter comigo. Cercaram-me com ar sombrio. Um deles, com voz embargada, deu-me a notícia crua: ‘Sidónio, o teu filho morreu há pouco, em São Jorge.’ Pensei que fosse uma brincadeira de mau gosto. Mas depois dos abraços e das lágrimas, tive de acreditar. Fiquei desorientado, sem chão, sem norte. Incrédulo, revoltado”, recorda.

“O avô militar não conseguiu convencer ‘os generais’ a enviarem um helicóptero da Força Aérea para resgatar o corpo do meu menino e trazer a mãe e a irmã Sandra de quatro anos até ao Pico, onde decidimos que seria sepultado. A Força Aérea lamentou, mas informou que não se tratava de uma ‘operação de busca e salvamento’. E eu só queria trazer o meu filho...”, lamenta.

“Foi uma lancha do Faial, com baleeiros picarotos, que de madrugada fez a travessia da tragédia”, acrescenta.

Depois do Júlio Pedro, nasceram mais dois filhos: Carolina, atriz, e Romeu, joalheiro.

“Hoje perguntam-me: ‘Quantos filhos tens?’ E a resposta é sempre a mesma: ‘Sou pai de quatro’”, afirma.

Todas estas vivências levaram-no também à escrita, mas também gosta de pintar e fazer caricaturas. É autor dos livros de narrativa poética “Deserto de Todas as Chuvas” (2000), “Já Não Vem Ninguém” (2010) e “Baleeiros em Terra” (2025). Coautor de “A Balada das Baleias” (2007) e “Açores - O Poema da Luz” (2024). Fez recitais de poesia nas ilhas, por todo o país e no estrangeiro está representado em várias antologias literárias.

“O gosto pela escrita advém de uma necessidade interior que eu precisava de deixar transbordar”, conta.

Entre 1996 e 2000 foi deputado na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores (ALRAA), experiência que considera enriquecedora, mas que reforçou ainda mais o seu gosto pela vida de jornalista e comunicador.

“Foi uma experiência riquíssima, mas não é a minha paixão. E fez-me ver que eu sou é jornalista de rádio atempo inteiro”, salienta.

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