“A água e as flores são elementos simbólicos que enriquecem esta narrativa da identidade”

Célia Rakotondrainy. Francesa com origens malgaxes, escolheu os Açores como lugar para viver e criar. Há três anos que vive em São Miguel, onde encontrou a tranquilidade, o tempo e a inspiração para aprofundar o seu percurso como artista visual




Célia Rakotondrainy nasceu em 1994 em Paris, no 14º arrondissement, mas o mundo é o território da sua arte. Francesa com origens malgaxes, escolheu os Açores como lugar para viver e criar. Há três anos que vive em São Miguel, onde encontrou a tranquilidade, o tempo e a inspiração para aprofundar o seu percurso como artista visual. “O que eu adoro nos Açores é que há muitas coisas em construção e é um lugar incrível para as artes. O arquipélago fica entre três continentes quase, e podemos sentir uma diversidade e um desejo de fazer coisas novas e diferentes”, afirma.

Desde muito jovem sentiu o apelo do mundo artístico, embora nem sempre tenha sabido como lá chegar. “Desde muito pequena eu sabia que queria envolver-me no mundo da arte, ainda que não soubesse exatamente como”, recorda.

No liceu seguiu a via da economia e, naturalmente, ingressou num percurso universitário semelhante, com estudos em gestão de empresas e economia, em Paris. Mas esse caminho revelou-se limitado para as suas verdadeiras aspirações. Foi então que decidiu aprofundar a sua formação em história da arte e curadoria, acabando por rumar a Berlim, onde estudou gestão do mercado de arte.

Foi na capital alemã que começou a pintar, há cerca de seis anos. “De repente estava muito apaixonada, era quase uma obsessão. Não conseguia parar de pensar na pintura e de pesquisar”, conta.

A energia criativa tomou conta de si e deu início a uma nova fase de vida, cada vez mais focada na prática artística. “Foi nessa altura que comecei a pensar na pintura de forma profissional”, lembra, explicando que Berlim revelou-se um ponto de equilíbrio ideal para quem cresceu às portas de Paris: “É uma cidade muito vibrante, mas também demasiado intensa para mim. E a calma que encontrei em Berlim era um compromisso perfeito, porque ainda não estava pronta para uma vida super calma como a que tenho nos Açores.”

Durante esse tempo, Célia Rakotondrainy começou também a expor e a vender obras. “As pessoas começaram a mostrar-se interessadas em comprar as minhas peças e, pouco a pouco, fui construindo esta profissão a partir de Berlim”, revela.

Apesar de viver na Alemanha, os Açores já estavam no horizonte: a primeira visita à região tinha acontecido onze anos antes e deixara-lhe uma impressão marcante. Durante o confinamento da pandemia, em Berlim, essa vontade de mudar ganhou força. Quando os voos voltaram a funcionar, decidiu “empacotar toda a vida” e partir rumo a São Miguel.
Instalada na Ribeira Grande, Célia Rakotondrainy começou por manter projetos fora da ilha — nos Estados Unidos e na Europa —, mas tem vindo a desenvolver um envolvimento cada vez maior com a comunidade artística local. Atualmente, orienta workshops de pintura no seu estúdio e está a trabalhar na criação de dois espaços de residências artísticas: um em Rabo de Peixe, vocacionado para o desenvolvimento de artistas emergentes, e outro na Ribeira Seca, idealizado como uma casa de arte com colaborações internacionais entre curadores, colecionadores e artistas.

Recentemente, Célia Rakotondrainy participou no festival SARGO - Surf and Art com uma obra para a Junta de Freguesia da Ribeira Seca e ambiciona fazer uma exposição em São Miguel ainda este ano ou no próximo.

Paralelamente, integra um coletivo de mulheres artistas que apresenta obras de forma inovadora, tendo apresentado no mês de abril os seus trabalhos em Paris. “Construímos um portefólio de 10 a 20 obras que apresentamos durante um mês e que podem ser adquiridas por colecionadores, que as pagam durante um ano. Assim é mais fácil para jovens colecionadores adquirirem arte e os artistas garantem um rendimento estável durante 12 meses. É um projeto maravilhoso, que me permitiu vir morar para os Açores”, explica.

A estabilidade proporcionada por este projeto tem sido, para a artista, fundamental. “O facto de saber que tenho um rendimento estável durante 12 meses permite-me concentrar mais no meu trabalho artístico. Por isso este projeto é muito importante para mim.”, destaca.

A artista revelou ainda que a sua arte é profundamente marcada pela reflexão sobre a identidade, a pertença e a multiplicidade. 

“O meu trabalho é um testemunho da fluidez e complexidade da identidade. Pinto com pinceladas espessas e deliberadas para refletir o meu propósito de jogar com a ilusão de detalhe e quase desafiar a nossa perceção”, afirma, explicando que os seus retratos ganham forma através de sobreposições e reorganizações na tela, simbolizando camadas em constante mutação.

“Esta necessidade de ir além do conflito e de harmonizar vários elementos da nossa identidade, na minha arte, é muito inspirada na minha própria narrativa por ser francesa e malgaxe, ter nascido entre dois países diferentes”, sublinha.

A água e as flores são elementos recorrentes nas suas obras, símbolos da transformação e da dualidade. “A água, com a sua natureza dupla de terror e de cura, e as flores, que simbolizam a natureza em mutação, são elementos simbólicos que enriquecem esta narrativa da identidade”, destaca.

Mas a vivência açoriana influenciou também a sua paleta, uma vez que as cores que encontrou nos Açores, onde está rodeada de mar e vegetação, “mudaram a minha paleta” e são uma fonte contínua de inspiração.

Célia Rakotondrainy revelou ainda acreditar na arte como espaço de partilha. “Estou muito interessada nas colaborações, que estão sempre no cerne da minha prática. Todos os meus projetos são em colaboração com artistas diferentes, o que permite juntar os discursos. Adoro esta parte em que a arte se torna um espaço de partilha das nossas histórias”, disse, explicando que nos Açores, encontrou o lugar certo para criar, colaborar e aprofundar a sua linguagem artística.

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